Para aproximar os guardiões e guardiãs das sementes crioulas de quem busca uma alimentação livre de agrotóxicos, a ASA lança uma campanha nas redes sociais
“Vou separar as sementes para plantar”, dizia meu pai sempre que comia algo do seu agrado. Escutei tanto esta frase que ficou gravada na minha memória. Meu pai é uma pessoa interessante. Nunca foi agricultor, migrou do agreste de Pernambuco para a capital muito menino e passou muitos anos da vida numa casa no subúrbio do Recife que lhe oferecia apenas uma pequena área com cerca de 10m² para cultivo no quintal.
Mesmo tendo um pai com espírito de agricultor, cresci numa rotina urbana. Chamava semente de caroço e aquilo, pra mim, não teria outro destino que não fosse a lata do lixo ou a panela, no caso daquelas que cozinham. Nesta época, não tinha o mesmo sonho de meu pai de um dia ter uma terrinha que acolhesse o tanto de sementes que ele gostaria de germinar. Elas só passaram a ter outro significado pra mim quando comecei a me encontrar, conversar, entrevistar e aprender com os/as agricultores/as familiares, campesinos e campesinas, do Semiárido brasileiro.
Pra quem mora nos centros urbanos, não planta o que come e compra seus alimentos no supermercado, em geral, as sementes passam despercebidas. Bora fazer um teste? Tente se lembrar do que você comeu nas últimas 24 horas. Desse alimento, o quê veio das plantas?
É com estas perguntas que a professora e bióloga Rosa Lía Barbieri costuma iniciar o diálogo com os estudantes da disciplina ‘Origem e evolução de plantas cultivadas’, no Programa de Pós-graduação em Agronomia, da Universidade Federal de Pelotas (RS).
“Na primeira aula, o que eu faço com os alunos é um exercício para eles pararem e pensarem o que eles comeram nas últimas 24 horas e o que disso veio de plantas. Então, eles, muitas vezes, não se dão conta de que tomaram cerveja e que a cerveja foi feita de cevada que é uma planta, ou que tomaram, sei lá, café, e que botaram açúcar e que o açúcar é da cana-de-açúcar, enfim. Então, é um exercício que as pessoas normalmente não fazem de parar um pouquinho e de pensar: o que eu comi hoje? De onde é que veio isso? Se isso é processado, industrializado, mas qual o caminho que isso fez, desde a semente que o agricultor plantou até chegar na minha mesa?”, conta Barbieri, que também é pesquisadora da Embrapa e trabalha no banco que guarda sementes a longo prazo na unidade da Embrapa Recursos Genéticos e Biotecnologia, em Brasília.
De fato, compramos e comemos, sem muitas reflexões sobre a origem do alimento, a qualidade da semente, quem guardou essa semente para ser plantada até os dias atuais. “A pessoa não se dá conta de que vai comprar um pão e que tem farinha processada. As pessoas não param para pensar que aquilo veio de uma planta, que aquilo veio do trigo. A grande maioria das pessoas nunca viu uma planta de trigo. Não sabe o que é uma planta de trigo, não sabe como é que se produz aquilo. Nem para pra pensar sobre isso, como é que o trigo, como é que o pão chegou na tua mesa”, observa Barbieri.
E, com esse jeito automático de agir, abrimos mão de prestar atenção em algo, muitas vezes bem pequeno, mas que toda a humanidade é dependente: as sementes. Sem elas, não teríamos plantas, nem comidas, nem água – já que a vegetação faz parte do ciclo das águas. Sem elas, não teríamos como viver.
Por mais que a indústria de alimentos faça uso de tecnologias ultramodernas, não há sementes totalmente criadas em laboratório. Porque o homem não possui o dom de criar a vida. Mas, há muitas sementes que são manipuladas artificialmente. E, algumas delas são geneticamente modificadas para incluir genes de outras plantas e animais no código genético das plantas sem saber onde isso vai dar e as consequências que provocará em quem come e na natureza.
Há uma disputa muito grande das empresas para dominar as sementes que são a nossa base alimentar. Um mercado fabuloso, não é? Se as sementes tiverem patentes como buscam fazer os megas laboratórios, todo mundo vai precisar de dinheiro para comer, até quem cultiva o alimento. Além disso, a nossa diversidade alimentar vai acabar e ficaremos reféns de sementes manipuladas em laboratório para resistir a níveis cada vez maiores de agrotóxicos. Sem falar que a nossa dieta ficará restrita a uns poucos tipos de alimentos que brotarão a partir das sementes patenteadas.
Já estamos em um processo acelerado e avançado de perda das variedades de sementes. Só no século 20, perdemos cerca de 90% das sementes domesticadas em 12 mil anos da prática da agricultura.
“E isso foi perdido porque mudou o sistema de produção agrícola, depois da segunda guerra mundial, na chamada Revolução Verde, onde o que se buscava era plantas extremamente produtivas e se deixou de lado, características super importante que são a rusticidade, o sabor, a riqueza nutricional”, contextualiza a pesquisadora da Embrapa.
Quem quiser mergulhar mais no universo das sementes e suas ameaças globais, recomendo que assistam ao documentário “Semente – a história nunca contada”, disponível no Youtube.
Apesar desta imensa erosão genética das sementes crioulas de todo mundo, ainda há cerca de 10% delas sob os cuidados, proteção e reprodução dos seus guardiões e guardiãs – as famílias agricultoras e as comunidades e povos tradicionais – que vivem nas florestas e nos campos do Brasil.
Eles guardam as sementes que são a origem da alimentação saudável. Porque só sementes saudáveis podem geram alimentos sadios, limpos de venenos. “Elas não necessitam de pesticida, de adubo químico pra produzir, porque elas foram selecionadas [ao longo de muitas gerações] pra produzirem sem isso, elas são muito mais saudáveis. A gente não tá consumindo alguma coisa que contamina o ambiente, que contamina o agricultor e que tá contaminando o consumidor também”, assegura Barbieri, que representa as Américas no Comitê Consultivo Internacional do Banco Mundial de Sementes que fica na Noruega.
E as sementes crioulas independem de insumos químicos para se desenvolver porque são resultado de processos de melhoramentos genéticos que aconteceram pela interferência humana, como também resultam da seleção natural do próprio ambiente de cultivo. “Essas sementes crioulas são super adaptadas às condições de estresse dos ambientes onde estão. Seja de seca, seja de frio. No Rio Grande do Sul, as variedades crioulas são totalmente adaptadas pra geadas. No caso de vocês [Semiárido], são adaptadas às condições de estresse hídrico, que é a seca”, acrescenta Barbieri.
Segundo a pesquisadora da Embrapa, as sementes crioulas são mais rústicas, com teores nutricionais maiores, geralmente. “Elas não passaram por um programa de melhoramento genético massificado para aumentar a produção. Foram selecionadas pelos agricultores, geralmente em função de sabor, textura ou uma relação com alguma comida tradicional, que é uma coisa que vem associada com a cultura. Então, a semente crioula, além desse aspecto importante pra segurança alimentar e nutricional, ela tem essa questão histórica e cultural. Elas são patrimônio cultural da agricultura local”.
De uns tempos para cá, quem mora nos centros urbanos têm tido oportunidades de apreciar os sabores das sementes crioulas. O local de encontro entre os consumidores e as sementes de domínio dos agricultores e agricultoras tem sido as feiras agroecológicas. No Recife, Gabriel Furtado, que trabalha na área cultural, é um deles. “Muitas vezes fico com pena das sementes que vão para o lixo diariamente das frutas que como”, diz, afirmando que tem total consciência da importância das sementes na nossa vida, mas que conhece pouco a luta travada entre as indústrias de atuação global e os numerosos guardiões e guardiãs das sementes tradicionais.
Pelo seu imprescindível papel na alimentação da humanidade, as sementes crioulas merecem toda nossa atenção. E as pessoas que dedicam a vida a guardá-las e multiplicá-las, o nosso apoio incondicional. Mas, como aponta Gabriel, há uma desconexão entre estas duas pontas.
Para aproximar um pouco mais as pessoas que buscam uma alimentação saudável e as que produzem os alimentos de verdade, a ASA e o Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) lançam esta semana uma campanha de valorização das sementes crioulas nas redes sociais. “Se a campanha conseguir despertar interesse de quem já é consumidor/a das feiras agroecológicas para o tema das sementes e elas busquem mais informações e formas de apoiar as iniciativas de fortalecimento da agricultura familiar e das sementes crioulas, teremos alcançado nosso objetivo”, assegura Fernanda Cruz, coordenadora da assessoria de comunicação da ASA.
Afinal de contas, um dos principais papéis da comunicação é fazer pontes entre realidades distintas, para que saímos de nossos mundos e reconheçamos o outro, sua história e sua ação em defesa das sementes que alimentam a humanidade.