Por Elka Macedo – ASACom
A abolição da escravatura em 1988 e a instauração do dia da consciência negra em 2003 não apagaram as marcas do racismo e tampouco pagaram a dívida histórica que o Brasil tem para com as populações afrodescendentes. Em pouco mais de 500 anos de história a diferença étnico-racial ainda é alarmante, principalmente, quando se fala em taxa de homicídios. Segundo informações do Atlas da Violência 2018 do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (Ipea) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016, 4.645 mulheres foram assassinadas no Brasil. A maioria das vítimas era negra. Nos 10 anos de análise (de 2006 a 2016), enquanto reduziu em 8% o número de homicídios de mulheres brancas, a morte das negras cresceu cerca de 15,4%.
Entre os jovens negros, as estatísticas não são muito diferentes. Embora sejam 54% da população, os negros representam 71% das vítimas de homicídios no país, segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Às vésperas do dia consciência negra 20 de novembro, a mestra em Ciências Humanas e atuante na Marcha das Mulheres Negras, Domênica Rodrigues, fala sobre a vulnerabilidade; o racismo e os desafios no campo dos direitos para as populações negras frente ao contexto político atual.
Primeiro, gostaria que você falasse sobre os desafios e resistência do ser mulher negra numa sociedade machista, racista e misógina.
Ser negra nesta sociedade além de um ato de coragem é um ato político. Eu tenho ainda a oportunidade de ser uma mulher negra academicista, mestra que teve algumas oportunidades que tantas outras mulheres negras como eu não tiveram. E mesmo assim, a sociedade só me aceita porque não me respeita. Me aceita como uma mulher acadêmica, como uma mulher intelectual e ascendente no sentido de construção do conhecimento, mas mesmo assim me objetificam. Ser mulher negra é lutar contra a objetificação da imagem desta mulher que foi construída durante estes 500 e poucos anos de vida que o Brasil tem, nos quais objetificaram o meu corpo, a minha pele, a tez do meu rosto, e estigmatizam que as pessoas negras não envelhecem nunca. Os estigmas fortalecem o discurso do machismo, do racismo e da misoginia.
Do machismo porque a ideia da mulher negra objeto, ela é real! Então toda mulher negra tem o corpo preparado para seduzir, mesmo que ela não queira. É racista porque objetifica nosso corpo e esta objetificação leva a gente para o lugar do racismo que é o de identificar a mulher negra como ainda do tempo da escravidão quando ela podia ser desejada, podia ser abusada, mas ela não podia ser apresentada como a preferida. Porque ela não está globalmente aceita pela sociedade, ela não tem um padrão eurocêntrico de ser observado. Ela não tem o cabelo, a cor da pele e a maciez de todas as mulheres. A misoginia se dá pelo racismo e pelo machismo que é instalado junto à mulher negra, legitimado pelo Estado e pela sociedade. E a gente tem um alto índice de feminicídio por dois motivos: o primeiro porque somos a maioria da população e o segundo porque ainda somos mais vulneráveis.
O que representa o dia da consciência negra? O que a data revela e exige da sociedade?
Eu sempre digo que o dia da consciência negra são todos os dias. A gente precisa estabelecer nas pessoas um calendário diário de consciência negra para todos. A gente precisa entender que quando eu digo que a minha tataravó foi uma negra escrava que fazia a comida da sinhá, e eu sou uma pessoa branca hoje, eu preciso entender que na minha família houve uma onda de preconceito tão grande que as pessoas quiseram que a família fosse esbranquiçada. Então as pessoas foram se aliando com pessoas mais claras porque queriam que seus filhos sofressem menos e isso é fato.
O dia 20 de novembro não é dia de festejar e fazer alusão às conquistas menores. É um dia pra revelar que os direitos vieram sim, mas não foram para todos, porque a população negra continua morrendo em todos os espaços, ela morre no trabalho, nos hospitais, nas ruas. Ela é a cor da segurança pública. Quando eu falo que a nossa cor é a cor da segurança pública é porque jamais uma mulher branca vai ser identificada como uma ladra se ela entrar num espaço, mas uma mulher negra entrando numa loja, independente de como ela esteja vestida ela vai ser sim alvo de preconceito e observada como uma possível ladra. Ela não vai ser cleptomaníaca, mas sim ladra. Este racismo precisa ser pensado todos os dias, para além do dia 20 de novembro. É um dia pra gente pensar em garantia de direitos para a população negra que ainda resiste, existe e se reinventa num país inventado.
A luta do povo negro por direitos é uma constante desde o Brasil colônia. O que mudou nestes mais de 500 anos de exploração da mão-de-obra negra?
A escravidão é dada por um processo de exploração e, dentro destes 500 anos, pouca coisa em relação à população negra no Brasil, eu acredito, que tenha mudado. De lá pra cá, o que a gente vê de mudança são alguns direitos que a gente tem… (ela dá uma pausa) de forma quase “igualitária”. Foi nos dado o direito de ter carteira de trabalho, identidade, acesso à escola pública, hospitais, direito de ir ao cinema e ao teatro. Políticas públicas que referendem a necessidade de igualdade da população negra foi e é um avanço considerável para nós. A gente consegue ver este marco desde o segundo ano do governo Lula. E isso é notório! Foi neste governo que a gente conseguiu se sentir à vontade pra dizer-se negro, pra mostrar-se negra. Foi neste governo que a gente teve uma política constituída especificamente para a população negra, quilombola e indígena. Foi neste governo que a gente conseguiu alguns espaços na educação para a população negra, indígena e quilombola.
O Programa Brasil Quilombola mapeou mais de 3 mil comunidades, mas forneceu apenas 40 títulos de propriedade de terra. Isso revela muito do desafio do reconhecimento das populações quilombolas. Em sua opinião, é possível reverter este quadro levando em consideração o cenário político do país?
Pra mim o que faltou para os outros 2.960 títulos saírem foi o grande tempo que esta população ficou na invisibilidade. A falta de visibilidade destas pessoas deu a elas o não direito de ter identidade. Ao meu olhar o que dificultou a posse de terra além das burocracias do governo, foi a falta de documentação destas populações. Do não direito de ter o mínimo de direito. O que querem é tapar nossa visão! Porque se a pessoa tem um pedaço de terra, ela tem autonomia pra fazer o que quiser; aí ela pode dizer que não quer ir mais pra casa de “dona fulana” trabalhar porque pode produzir na própria terra, e a partir daí vai ser agricultora e não mais cozinheira; porque sendo agricultora vai poder se associar ao sindicato, tirar a carteira e se aposentar.
Sobre o governo que está aí, acredito que eles não estão preocupados com a população negra, quilombola e indígena. E estão pouco interessados em fazer reforma agrária e garantir posse de terra para quem não tem ou para quem vive na terra há mais de cinco anos. Acredito que nós não teremos muitos avanços, acho que os incentivos para a permanência no campo serão curtíssimos. A gente sentiu isso com a saída de Dilma, a gente pôde sentir na pele o crescente número de moradores de rua. O golpe favoreceu o não viver no campo enquanto a gente trabalha pelo bem viver. Porque quando você não investe no campo, as populações migram para a cidade e a cidade nem sempre tem tudo para oferecer. Este governo é para favorecer o aumento da miserabilidade e de um novo êxodo rural, que aumenta a miserabilidade também nos centros urbanos.
Atualmente, vemos de forma mais expressiva a repressão às comunidades tradicionais, sobretudo às indígenas e quilombolas, a exemplo do recente caso de desapropriação de 450 famílias do quilombo Campo Grande em Minas. Que luzes podemos ver diante desta situação? O que fortalece a luta e a resistência do povo negro?
Pensar em resistir em tempos como estes é um ato de coragem. O que a gente pode fazer estrategicamente é se cuidar. A gente perdeu o cuidado com o outro; a gente perdeu em nós a necessidade de perguntar se o outro estava bem porque estava tudo andando bem. Não estava do jeito que a gente queria, mas estava andando como a gente achava que devia ser. Agora é hora de ir nos meninos que foram desapropriados e dizer: estamos juntos com vocês. É a gente se solidarizar e ser coerente com o que a gente fala, pensa e faz. Hoje com tanta repressão, a gente precisa acima de tudo dizer que a gente é exatamente aquilo que a gente acredita. A gente não tem tempo de ficar em silêncio e esperar que elas aconteçam, a gente tem que lutar para que elas saiam do papel.
…Ao final, Domênica lembra o desafio da valorização dos povos negros que vivem no campo.
A agroecologia no Brasil é feita pelo negro e especialmente pela mulher negra, mas ainda é invisibilizada no espaço rural. A mulher negra, muitas vezes, é invisibilizada na constituição de uma guardiã de sementes, na produção, na comercialização. Então o que hoje a gente tem de agroecologia é feita pelos negros, mas ainda é para as pessoas brancas. Quem consome é o branco, médio, burguês da cidade. E dentro deste processo de pensar a consciência negra, é preciso pensar este negro que está no campo e como é que ele produz no campo para que este produto seja consumido por ele também.