Documento defende propostas baseadas em políticas já existentes e direitos assegurados pela Constituição e cobra dos gestores públicos sua efetivação.
Há mais de 20 anos, a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA) tem buscado dar visibilidade ao potencial da região, construindo e executando propostas pautadas nas estratégias de convivência com o Semiárido construídas pelos seus povos. Falamos de uma região que ocupa cerca 12% do território nacional (1,03 milhão de km²) e abrange 1.262 municípios brasileiros, onde vivem aproximadamente 27 milhões de brasileiros/as (12% da população do país). Muito se avançou nessas décadas no sentido de inclusão das pessoas no desenvolvimento local, mas muito ainda há que se fazer para que se garanta a plena garantia dos direitos fundamentais.
E é nesse contexto que a Pandemia de Covid-19 encontra o Semiárido brasileiro: milhares de famílias ainda sem acesso à água para consumo humano e para produção de alimentos, falta de assessoria técnica adequada e contínua de apoio à comercialização da produção da agricultura familiar, cortes do Programa de Saúde da Família, no Programa Mais Médicos e nas políticas de transferência de renda direta como o Bolsa Família. Muitas dessas ausências e insuficiências são resultados da Emenda Constitucional 95, que impõe um teto dos gastos públicos, congelando recursos do Sistema Único de Saúde (SUS) e de outros serviços públicos essenciais.
Em um contexto de agravamento e sobrecarga do SUS, de empobrecimento da população, aumento do desemprego e cortes nas políticas e programas sociais, o retorno da fome torna-se uma realidade para as populações mais vulneráveis. Não haverá uma luta justa contra a expansão rápida da Covid-19 se não tivermos direitos humanos garantidos, como alimentação saudável e acesso à água de qualidade para as famílias do Semiárido brasileiro. Por isso é urgente a retomada do papel do Estado no atendimento dos serviços públicos e de proteção social.
Agrava-se a essa realidade um inverno com índices pluviométricos superiores aos dos últimos 8 anos. Se as chuvas trazem água que mata a sede, como é sabido são chuvas concentradas em um curto espaço de tempo que encontram suas matas exauridas por uma histórica exploração agrícola intensiva e extrativismo irregular, provocando enchentes e inundações.
Neste cenário de Pandemia aliado ao histórico descaso e cortes em políticas públicas para as populações mais vulneráveis do Semiárido brasileiro, é preciso que todos os níveis da esfera pública se empenhem para evitar uma catástrofe em uma região onde habitam mais de 1,7 milhões de famílias agricultoras.
Falamos de um contexto que não será superado a curto prazo, pois, para além do impacto causado pelo vírus, há os desdobramentos socioeconômicos provenientes da luta contra o mesmo, o pós-Pandemia. Caso não haja garantias de investimentos na região, teremos uma tragédia anunciada que impactará milhares de agricultores e agricultoras desse território e de regiões do país.
Considerando o acúmulo proveniente das mais de 3.000 organizações que formam a ASA e reafirmando a importância da manutenção do isolamento social como principal medida para conter o avanço do Coronavírus, a ASA propõe:
1. Ação de comunicação eficaz orientando a população urbana e rural acerca dos procedimentos de prevenção à Covid-19, como lavar as mãos, isolamento social, uso da máscara e a necessidade de maior cuidado com os segmentos de risco: idosos/as, asmáticos/as, hipertensos/as, diabéticos/as, entre outras enfermidades autoimunes.
2. A construção de planos de proteção às populações rurais, com aquisição e distribuição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) para profissionais de saúde e famílias da zona rural, equipamentos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para os regionais de saúde e municípios. Orientando de forma objetiva a população para os locais que devem se dirigir, no caso de suspeita de contaminação e nos casos de estado de saúde agravado.
3. Informar e bem orientar as pessoas que não possuem Bolsa-Família a fazerem o cadastro do auxílio emergencial já aprovado no Congresso, garantindo que tais direitos cheguem à população rural.
4. Retomar e ampliar o acesso à água para as populações rurais do Semiárido, através das tecnologias sociais de captação e armazenamento de água de chuva, com o Programa Cisternas. Ainda há uma demanda de 350 mil famílias sem acesso à água para beber e cozinhar. Um investimento de aproximadamente R$ 1,3 bilhões em Cisternas de Placas de 16 mil litros garantiria o direito humano básico de acesso à água. E mais 800 mil tecnologias de acesso à água para a produção de alimentos potencializará a segurança alimentar e nutricional de famílias do Semiárido.
5. Retomar programas e políticas de abastecimento alimentar, como o repasse imediato e emergencial de R$ 1 bilhão para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) nas modalidades compra direta e formação de estoque, comprando alimentos da agricultura familiar para alimentar populações vulneráveis. Recursos que devem ser geridos por estados, municípios e pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Bem como garantir o fortalecimento e expansão do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) para atendimento imediato às famílias de estudantes e quando da retomada das aulas, pós período de isolamento social.
6. Garantir recursos que assegurem o trabalho das organizações sociais, redes e instituições públicas no campo da Assistência Técnica e Extensão Rural adequada e de qualidade para os agricultores e as agricultoras familiares, de modo a fortalecer e ampliar as capacidades de produção de alimentos saudáveis de base agroecológica e garantir a oferta de produtos, pós-Pandemia, para as populações rurais e urbanas que não têm condições de produzir seu próprio alimento.
7. Garantia de organização e segurança em saúde para o funcionamento das feiras agroecológicas, da agricultura familiar e feiras livres nas capitais e nos municípios do interior, assegurando o importante papel que esses espaços cumprem de abastecimento alimentar.
8. Assegurar atenção especial de orientação, prevenção e atenção médica, bem como da garantia do direito à alimentação saudável e acesso à água, às populações Quilombolas e Indígenas, considerando que somente no Semiárido brasileiro existem mais de 1400 comunidades quilombolas e mais de 34 etnias indígenas. Assegurando os direitos consagrados na Constituição Federal para esses povos e o dever do Estado brasileiro de garantir sua proteção.
9. Garantir investimentos emergenciais e estruturantes para promoção de ações educativas não sexistas que apoiem a luta pelo fim da violência contra as mulheres e a denúncia dos casos, acionando as redes de proteção nos estados e municípios. Considerando que em tempos de isolamento social a violência contra a mulher, em especial a violência doméstica, tende a aumentar, acirrando os conflitos nas relações de poder nas famílias e a postura machista dos companheiros.
Reafirmamos nossa posição incondicional em defesa da Democracia. Reafirmamos nossa crença nas instituições do Estado brasileiro e do diálogo que devem construir com a sociedade civil e movimentos sociais, para que tenhamos um ambiente político que nos permita superar o desafio que o Coronavírus nos impõe.
Entendemos que a atenção às propostas para a região Semiárida poderá evitar no futuro próximo uma situação de calamidade, a qual não terão responsáveis outros que não gestores públicos das diferentes esferas do poder. E que as propostas aqui apresentadas se baseiam em políticas já existentes e direitos assegurados pela Constituição Federal, cabendo aos gestores do Estado sua efetivação.
Por um Semiárido com Vida!
Semiárido Brasileiro, 21 de abril de 2020
Articulação Semiárido Brasileiro (ASA)
Publicado originalmente em: https://www.asabrasil.org.br/noticias?artigo_id=11045