Por Rosa Sampaio, com colaboração de Verônica Pragana – Asacom
A Comunicação como direito, direito à voz, à visibilidade e representatividade, que não se limita apenas no direito de receber informações, mas de exercer a liberdade de expressão, combatendo inclusive a visão hegemônica do capital hoje no Brasil. Um país que historicamente não trata da política de comunicação como um direito humano, que não regulou a meios de radiodifusão, nem democratizou o acesso às concessões públicas e perdeu a oportunidade de fortalecer a complementaridade dos sistemas de comunicação: privado, público e estatal, garantida na Constituição Federal, a constituição democrática, que destaca nos seus artigos o que seria uma mídia para um Estado Democrático de Direitos.
Na contramão da falta da vontade política dos governos executivos e legislativos para o tema, atores sociais de diversas partes do Brasil diverso, plural, que ecoa vozes, sotaques e modos de falar tão distintos, colocam nas suas pautas e ações contribuições para garantir a comunicação como direito para a maioria dos brasileiros e brasileiras. Muitos desses atores estão ligados a instituições que hoje integram o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, o FNDC, com seus comitês e fóruns estaduais espalhados pelas regiões desse extenso país.
No Semiárido, região que abrange os nove estados do Nordeste, o norte de Minas Gerais e a região do Vale do Jequitinhonha, muitas organizações que compõem a Articulação Semiárido Brasileiro, ASA, vem construindo caminhos de acesso ao debate político e à comunicação popular nas suas formações e como resistência e garantia de visibilidade de um povo invisível aos grandes meios de comunicação do país, quando não muito, retratados em cenários de fome, miséria, inviável à vida.
Nesses 20 da ASA, a comunicação foi sendo apropriada e sentida como uma necessidade não apenas para dar visibilidade às pautas públicas das organizações do Semiárido, mas para fortalecer o pertencimento do povo do campo, valorizando seu trabalho, sua cultura e sua forma de vida, proporcionando um maior entendimento da sua realidade e dos seus direitos, o direito inclusive à voz pública, o direito de ser escutado.
Falar da comunicação popular da ASA é um contar de histórias, talvez o coser de uma colcha de retalhos com vários personagens que resistem e lutam na ruralidade do Semiárido brasileiro, como bem traduz Valquíria Lima, da coordenação executiva da ASA: “Ao longo dos 20 anos, a ASA sempre se preocupou com o olhar sobre o Semiárido brasileiro. Esse olhar que conta, esse olhar que fala da vida das pessoas, que no dia a dia praticam a convivência com o Semiárido. E nós contamos essas histórias através da comunicação popular, uma comunicação que tem esse objetivo: ser popular, ser inclusiva, de contar histórias de vidas invisíveis. E nesse contar das histórias, dar visibilidade à vida dos povos do Semiárido”.
Contar um pouco da história de uma juventude que desabrocha no Semiárido, falar de Jéssica de Freitas, 27 anos, que compõe um tecido, um retalho, do fazer da ASA, do fazer a comunicação popular. Natural do sertão da Paraíba, cresceu na comunidade rural do Sítio Jabre, no município de Matureia, Jéssica ingressou, em 2012, na faculdade de Jornalismo via ProUni – Programa Universidade para Todos. “Mas foi ao conhecer o trabalho de uma ONG, em Teixeira, que me encantei pela comunicação popular. No Centro de Educação Popular e Formação Social – CEPFS, tive o contato com o trabalho das agricultoras e agricultores familiares através da sistematização de suas experiências de produção de alimentos e organização comunitária. E, também, com as ações voltadas para o incentivo a jovens, filhos de agricultores, que aprenderam a utilizar a comunicação como reivindicação de direitos.”
Em 2006, Jéssica veio para o sertão de Pernambuco, e na ADESSU Baixa Verde, uma associação de agricultoras e agricultores familiares que desenvolvem práticas agroecológicas no sertão do Pajeú pernambucano. Ela trabalhou junto a um grupo de adolescentes e jovens, vindos de comunidades rurais, o direito e o exercício da comunicação popular, como prática de conhecimento e de reivindicações de direitos. Na ASA Paraíba e Pernambuco, por onde atuou, Jéssica identificou a comunicação popular como transformadora de realidades e mobilizadora para fortalecer lutas, para enfrentar realidades de escassez de água, de luta pela terra, desafios postos para as comunidades da região.
“Conheci a Rede ASA através do Programa Uma Terra e Duas Águas e conheci também o Programa Um Milhão de Cisternas, através dos processos de mobilização e comunicação desenvolvidos, constatei que conviver com o Semiárido vai além de se adaptar às mudanças climáticas, é também buscar alternativas para conviver de forma digna e com qualidade de vida, para isso, é preciso ter acesso a uma série de direitos que viabilizem essa permanência e a comunicação é fundamental para que o povo do Semiárido possa mostrar todo seu potencial.”
A importância da comunicação para a garantia de direitos é o grande vetor para a transformação da sociedade, para as lutas por políticas públicas em um Estado democrático. As agendas em um país tão extenso e plural como o Brasil disputam o espaço político e o envolvimento da opinião pública. Garantir visibilidade e representatividade de um povo é também garantir de alguma forma a sua “existência”, é garantir direitos humanos.
“Acredito que o fazer comunicação e, principalmente, a comunicação popular, é uma prática cotidiana, apesar dos desmontes de direitos que o país enfrenta na conjuntura atual. O povo do Semiárido não pode parar de reivindicar e de mostrar todo o potencial produtivo que essa região tem, seja na produção de alimentos ou na produção de conhecimento. São 20 anos de luta e resistência e sem comunicação não há direitos, não há cidadania, não há agroecologia”, finaliza Jéssica Freitas, que segue na missão de comunicadora popular no Semiárido pernambucano.
Para o pernambucano Alexandre Pires, da coordenação executiva da ASA, o que a rede faz é um exercício permanente de democratização do processo de comunicação e se faz não só ponto de vista das narrativas e da construção político, ideológica, mas também na prática. “Dar visibilidade e dar voz aos agricultores/as, camponeses/as talvez tenha sido um dos principais legados que a ASA construiu no campo da comunicação ao longo dos 20 anos. Dar voz aos invisíveis, àqueles a quem é negado a expressão, a possibilidade de falar, é algo revolucionário. E a perspectiva da ASA tem muito disso. Essa construção plural e que ecoa nas diversas vozes é resultado de uma decisão política da ASA há 20 anos”, pontua.
E essa posição da ASA é percebida na importância que se dá à formação dentro dos programas e os destaques aos produtos de comunicação popular que, ao longo desses 20 anos, são construídos por Jéssica e por tantos outros comunicadores e comunicadoras populares que integram a rede ASA. Espaço onde as organizações querem cada vez mais ocupar. “Os caminhos que devemos seguir para frente é fortalecer, cada vez mais, a comunicação popular, a comunicação que mobiliza, a comunicação que diversifica conhecimentos, a comunicação que inclui, que possa falar de ações e de programas e de projetos na linha do desenvolvimento sustentável para o Semiárido brasileiro, que afirme os direitos, que afirme as políticas públicas de convivência, que tanto fizeram pra mudança da qualidade de vida dos povos do Semiárido brasileiro. É neste caminho que devemos continuar trilhando, afirmando e seguindo”, aponta para o futuro Valquíria Lima.
É preciso ocupar para resistir – A discussão da comunicação na ASA foi amadurecendo internamente, junto a sua rede de comunicadores e comunicadoras, em paralelo aos debates acadêmicos e às lutas de atores social pela democratização dos meios. A ideia de (re) construir o Semiárido pela voz e letras do seu povo, onde ele se visse, se sentisse representado por vozes e imagens nos meios de comunicação, fomentou um processo de formação em comunicação popular e de estratégias de ocupação nas rádios comunitárias e públicas na região.
E como forma de trilhar esse caminho e fortalecer o que há 20 anos a ASA vem construindo, se deu a iniciativa de ocupar cada vez mais, não apenas os veículos comunitários locais, como também a radiodifusão pública. No início deste ano, com o propósito de criar ponte de debate entre o campo e a cidade e fortalecer as discussões de gênero, a ASA começou um novo desafio, o da produção de um programa semanal para veiculação em uma rádio pública, a Rádio Frei Caneca FM do Recife, em Pernambuco. O programa Vozes do Campo e da Cidade foi selecionado no Edital Público de ocupação da grade da emissora, para fazer parte da Faixa Mulher, horário de meio dia às 13h, no qual foram priorizados programas que não apenas discutisse assuntos femininos, mas que tivesse na sua produção, apresentação, fontes e entrevistadas para diversos assuntos, as mulheres.
Para Fernanda Cruz, coordenadora da Assessoria de Comunicação da ASA, não há convivência com o Semiárido sem garantia de direitos, entre eles o direito à comunicação. “Portanto, precisamos e queremos, sim, ocupar os espaços midiáticos, sobretudo os públicos e comunitários. E esse movimento não apenas leva a nós, comunicadores e comunicadoras, a refletir sobre a comunicação que temos e a que queremos, mas também nos leva a incentivar as comunidades rurais a perceberem esses espaços como importante para expressarem suas crenças, valores e conhecimentos, ampliando os olhares e capacidades.”
“Tem uma perspectiva que a ASA vem assumindo que é de ocupação do espaço dos meios de comunicação, chegar na Rádio Frei Caneca, ter uma rádio web, ter um portal, buscar construir – além da luta das narrativas e da defesa política, mas construir possibilidades de ocupação destes meios de comunicação é algo fundamental. O nosso fazer busca também desbloquear ou abrir, rasgar um pouco esse casulo, essa coisa meio fechada, que o poder econômico e politico do país tomou conta, que é dos meios de comunicação”, enfatiza Alexandre Pires, que acredita que a ação da ASA busca dar voz aos sujeitos de direito, enfatizando que essa praxis se baseia na perspectiva do direito humano à comunicação, dizendo às pessoas que elas têm o direito de se comunicar e também de produzir os seus conteúdos.
Hoje o grande desafio posto é fortalecer o campo da democratização da comunicação e as discussões sobre a política de comunicação no Brasil, além do fortalecimento interno da sua rede de comunicadores populares espalhados pelos estados do Semiárido, diante o contexto político atual. Vinte anos ainda são poucos para quem almeja a radicalização da democracia, ainda é pouco tempo para desconstruir a hegemonia no setor da comunicação, que por anos vem sendo baseada pelos interesses econômicos, em detrimento ao lugar democrático da comunicação, com participação popular.