De Josué de Castro à pandemia Covid-19, a fome segue sendo um problema social e político no Brasil

Movimentos sociais apontam a agroecologia como único caminho capaz de transformar a realidade de fome hoje vivenciada por quase 20 milhões de pessoas no Brasil.


Por Érica Daiane Costa | ASACom

 

Você já ouviu falar em geografia e geopolítica da fome? E em Sistema Alimentar? Está sabendo que existem hoje mais de 19 milhões de pessoas no Brasil em situação de insegurança alimentar grave, o que fez o país retornar ao Mapa da Fome Mundial? Então, só no Semiárido brasileiro são 4 milhões de pessoas, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19. Você tem conhecimento de que, apesar disso, esse mesmo país é o quarto maior produtor de grãos do mundo? E que a população de pessoas obesas dobrou entre 2003 e 2019, passando de 12,2% para 26,8%, você sabia? Pois é, obesidade está ligada também a má qualidade da alimentação e não, necessariamente, à qualidade.

Mas o que tudo isso tem a ver com a fome? Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que o problema da fome no mundo pode ser resolvido. No Brasil, na década de 1930, um nordestino de Pernambuco, nascido em 05 de setembro de 1908, se dedicou a entender e apontar soluções para o fenômeno da fome, que, para ele, era resultado da desigualdade social e não da falta de alimento ou do excesso de pessoas.

Josué Apolônio de Castro, ou simplesmente Josué de Castro, como ficou eternizado, era médico, geógrafo, professor e deixou seu legado de luta contra a fome no Brasil, afirmando, inclusive, que “o que falta é vontade política para mobilizar recursos em favor dos que têm fome”.

Josué de Castro evidenciou as origens sociais, econômicas e políticas da fome em obras que ficaram conhecidas internacionalmente, cujos títulos são curiosos e despertam para um tema que era pouco tratado: a geografia da fome e a geopolítica da fome. Mais de 70 anos depois, o problema que ele tanto denunciou e buscou desnaturalizar segue sendo um empecilho para o pleno desenvolvimento do país.

O próprio termo desenvolvimento e subdesenvolvimento eram problematizados por Josué, que por duas vezes foi eleito deputado federal por Pernambuco. Conforme lembrou o pesquisador José Arlindo Soares durante live realizada no canal yotube, “Josué de Castro dizia que o subdesenvolvimento não é uma ausência do desenvolvimento, é simplesmente um produto negativo do desenvolvimento, é como se ele fosse gerado, em parte, pelo desenvolvimento”.

No atual cenário da fome no Brasil, outros termos vêm sendo problematizados, a exemplo de agronegócio. O pesquisador Sérgio Schneider, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), aponta que “a palavra agronegócio é uma ideia, uma noção, um termo, que, no Brasil, virou uma ideologia”. Para ele, esta é uma especificidade do país, que se apropriou do termo original agribusiness, cuja tradução se fortalece e tem diferentes sentidos, a exemplo da propaganda (hoje com a persuasão a partir do mote do agro é pop, agro é tech, agro é tudo); da bancada política no congresso; e do enraizamento de uma cultura que se institui na mentalidade das pessoas.

Sérgio, no entanto, chama atenção para o fato de que o agronegócio não é apenas uma narrativa, mas, sim, um setor econômico voltado para a agricultura industrial. Contudo, ele insiste em referir-se a algo mais amplo, que é o Sistema Alimentar, “que compreende um mundo muito maior de empresas e de atores e de agentes globais”.

Nessa perspectiva, para o pesquisador, o grande problema da produção de alimentos e da existência de um número alarmante de pessoas sem acesso a ele se concentra em um conjunto composto pelas empresas que produzem sementes e insumos, pelos grandes proprietários de terra, pelas fábricas e empresas de beneficiamento e comercialização e, por fim, pelos supermercados.

Esse modelo promove uma série de problemas como a pobreza, a fome e a obesidade. “Nós temos então que aumentar a lupa para aquilo que estamos olhando, o inimigo não é mais apenas o grande proprietário de terra que produz na forma de monocultura, os inimigos são muito mais amplos, estão muito mais diluídos no sistema alimentar como um todo”, reforçou o pesquisador da UFRGS, durante Live de abertura do Ciclo de Debates organizado pelo Núcleo Agrário da Bancada do PT na Câmara entre os dias 24 de agosto e 03 de setembro.

Em sintonia com esta percepção, a integrante da coordenação nacional do Movimento de Pequenos Agricultores/as (MPA), Leila Santana, ressalta que o Brasil “é um país que vende uma lógica de progresso e desenvolvimento, a partir do agro pop, do agronegócio e suas grandes relações com os conglomerados internacionais, mas, historicamente, vem fortalecendo o agravamento da pobreza por outro lado”. Para ela, há uma subalternização da nação ao capital internacional e com o desmonte de políticas sociais que tem ocorrido, a situação de miséria que vinha sendo, minimamente, combatida, volta com força total.

Caminhos nem tão novos assim – Para a integrante do Movimento de Mulheres Camponesas, Michella Calaça, a única saída que aponta para um sistema de alimentos saudáveis é a Agroecologia, que ela apresenta como uma ciência, um movimento, um modo de vida. A ativista ressalta ainda que é preciso haver uma relação entre ciência e tecnologia para que seja possível construir a soberania alimentar, sem perder de vista avanços urgentes como reforma agrária, garantia de terra e território, igualdade de gênero.

“Ninguém enfrenta a fome sem assumir as desigualdades profundas que o país tem vivido, (…) a fome é um exemplo da desigualdade profunda”, sinaliza Leila Santana. Ela lembra que a existência da desigualdade social é estrutural, é fruto de mais de 500 anos de opressões vividas pelas classes mais pobres, por isso deve ser enfrentada a partir de uma reação coletiva, garantindo a batalha das ideias na reconstrução de um projeto de país.

Para amenizar as necessidades das famílias que precisam se alimentar frente a crise econômica, política e sanitária atual, o MPA tem realizado mutirões que evidenciam a importância da partilha, inclusive mutirões para oferta de alimento do campo para a cidade, o que, para Leila, acaba por “firmar o papel do alimento e denunciar o governo [federal] que ataca a agricultura familiar.”

Na visão de Sérgio Schneider, o mundo já vivencia a existência de novas práticas alimentares, onde há novos sentidos para o alimento, para além da necessidade biológica, podendo atender a sentimentos e aspectos como prazer, praticidade, novidade, protesto e rebeldia. “Temos que parar de falar só de agricultura e agronegócio e nós temos que começar a falar na relação, no nexus, entre agricultura, alimentação e nutrição,” defende o pesquisador. Ele acredita que a pressão do público consumidor pode mudar o sistema de produção, a exemplo de pessoas que podem não querer comprar carne oriunda de áreas devastadas ou adquirir frutas com alto teor de veneno, como já ocorre hoje com algumas empresas do Vale do São Francisco. Essas empresas exportam uva e manga, por exemplo, condicionadas ao Limite Máximo de Resíduos (LMR), uma quantidade de agrotóxicos pré-definida permitida nos alimentos.  Ou seja,  priorizando a saúde das pessoas, os países impõem limites quanto à qualidade do que vão consumir. Contraditoriamente, estes países produzem e exportam para o Brasil os venenos que não querem receber de volta.

Na semana em que seria celebrado o aniversário de 113 anos de Josué de Castro, seus estudos seguem sendo atuais e necessários para subsidiar a consolidação de uma proposta contemporânea de superação da fome no Brasil. Somado a isso, para transformar a realidade de fome no Brasil, movimentos sociais defendem a agroecologia: “eu acho que a gente tem que partir desse consenso mínimo ou a gente não avança”, concluiu Michela.

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