História entrelaçada com o Semiárido

Trajetória da Articulação é a continuidade da revolução protagonizada, há décadas na região, pela sociedade civil organizada.
Por Fernanda Cruz – Asacom
Aos 20 anos temos o entusiasmo, a gana e a força da juventude. Essa força não é necessariamente física, não é palpável. Mas é uma energia capaz de mudar realidades que antes pareciam consolidadas. Parece até infantil, às vezes, acreditar que podemos fazer a diferença com tão pouca idade. Mas o que dizer de uma rede que já nasceu acreditando no seu poder de interferir na mudança de vida de todo um território? E será mesmo que 20 anos é pouco ao tratar-se de uma rede de organizações da sociedade civil?
Para uma articulação regional como ASA a chegada aos 20 anos tem aquele gostinho de quem chega à maturidade e evidencia sua diversidade, força e pujança, a partir de uma trajetória de unidade na convivência com o Semiárido e de muitos acertos. Afinal, estamos falando de uma rede de mais de 3 mil organizações, que atua num território com mais de 1 milhão de km², e que foi protagonista de uma experiência ímpar na relação entre Governo e Sociedade Civil. “Esses 20 anos significam uma trajetória de paixão. Todos que formam a ASA são apaixonados e apaixonadas pelo Semiárido. Todos somos orgulhosos do nosso pertencimento ao Semiárido. A paixão nos fez caminhar”, afirma Naidison Baptista, coordenador da ASA pelo estado da Bahia.
Mas para falar de 20 anos de ASA é preciso retroceder aproximadamente 40 anos da história do Semiárido, afinal, ambas histórias estão entrelaçadas. A ASA só existe porque lá atrás pessoas ergueram suas vozes e seus corpos diante de um sistema opressor, que sequer reconhecia as especificidades dessa região. Portanto, celebrar 20 anos de ASA é também celebrar as Ligas Camponesas; é reconhecer o quanto aprendemos com os trabalhadores rurais que marcaram o final da década de 1970 com greves e com a luta para a reorganização dos sindicatos; é rememorar a importância da luta da agricultora Margarida Alves e tantas outras que tombaram ao longo do caminho; é olhar para o passado e lembrar da seca entre 1979 e 1984 quando, milhares de pessoas morreram de fome; é reafirmar o quão emblemática foi a ocupação da Sudene, em 1993, por mais de 400 trabalhadores e trabalhadoras rurais potencializando o papel e as reivindicações dos movimentos sociais frente ao Estado Brasileiro.

É dentro desse bojo que a ASA surge, em 1999, último ano de mais um período de grande seca, durante o Fórum Paralelo à Conferência das Partes das Nações Unidas de Combate à Desertificação, a COP 3, realizada em Recife, dizendo:

“A convivência com as condições do semi-árido brasileiro e, em particular, com as secas é possível. (…) que homens e mulheres, adultos e jovens podem muito bem tomar seu destino em mãos, abalando as estruturas tradicionais de dominação política, hídrica e agrária; que toda família pode, sem grande custo, dispor de água limpa para beber e cozinhar e, também, com um mínimo de assistência técnica e crédito, viver dignamente, plantando, criando cabras, abelhas e galinhas; (…)”*
(*Trecho retirado da Declaração do Semiárido, 1999.)
Nessa época, a desertificação parecia mais um tema distante e que as consequências das mudanças climáticas nunca seriam uma realidade para além do sertão. Falar em Semiárido então, era algo distante. O que parecia existir era apenas o sertão nordestino, negando o Vale do Jequitinhonha e o Norte de Minas Gerais, como regiões igualmente secas e de extrema vulnerabilidade social. Mas o que era um sonho escrito numa folha de papel tornou-se realidade com o passar dos anos, fruto do trabalho da sociedade civil organizada. A imagem do Semiárido como território se consolida, com suas especificidades e potencialidades, mas sem perder de vista os desafios permanentes. O combate à seca dá lugar ao discurso da convivência com o Semiárido. O trabalhador triste e sofrido dá lugar ao camponês sabido, cheio de conhecimento sobre como lidar com sua própria terra. As mulheres e crianças, tão sofridas, ganham visibilidade e passam ser também serem vistas como sujeitos de direito e lutadoras por uma vida livre de violência.
Segundo Naidison, “sempre nos colocamos objetivos ousados e foi no passo a passo que fomos atingindo um a um, mesmo que parcialmente, porque eles ainda estão a nossa frente, a nos desafiar”. Para a economista Tânia Bacelar, o meio rural brasileiro experimentou mudanças importantes nas últimas décadas. “Destaco, especialmente, o reconhecimento pela sociedade e assim, pelas políticas públicas, da importância da agropecuária de base familiar na organização socioeconômica rural brasileira”.
Os números não mentem. Embora frios, eles são a evidência mais concreta de que a garantia de direitos é o passo inicial para que portas e janelas se abram, ampliando a perspectiva de vida de todo um povo. Estamos falando de 1.294.503 tecnologias de captação de água de chuva construídas. Isso sem mensurar os quintais produtivos, os bancos de sementes crioulas e, sobretudo, o resgate de cada semente perdida. E por que isso é importante? Porque o estoque de água, alimento (sobretudo as sementes) e forragem está na centralidade da convivência com o Semiárido. Embora repetitivo é necessário dizer que foi dessa forma que saímos de 1 milhão de mortos, na seca que 1877 a 1879, para 1 milhão de famílias com dignidade no Semiárido.
Ao longo desses 20 anos, a sociedade civil organizada na ASA demonstrou sua capacidade de gestão e operacionalização de grandes projetos, inclusive com recursos públicos, contribuindo com a transformação da vida de milhares de sertanejos e sertanejas. Isso sem fugir das suas raízes e da sua essência, sempre provocando a reflexão e priorizando o protagonismo do povo camponês. “Nós nunca nos satisfizemos com a proposição de políticas. A gente cria propostas, sistematiza, apresenta, mas quer também executá-las, para mostrar que a sociedade civil pode e tem capacidade de executar, mostrando que elas são viáveis. Ao executar políticas públicas tenho metas, tenho a necessidade de ser qualificado, tenho que fazer bom uso dos recursos públicos e nada disso é desprezado por nós e marcam positivamente os nossos 20 anos de estrada. Isso tudo sem perder de vista o diálogo com a dimensão de rede diversa e plural característica da ASA”, explica Naidison Baptista.

“Através da execução de políticas públicas, das cisternas, da valorização das sementes e do trabalho da juventude a ASA contribuiu com o fortalecimento da minha autonomia enquanto agricultora e agricultor”, diz Adailma Ezequiel, de Queimadas, na Paraíba. Assim como ela, a paraibana, Petrúcia Nunes, de 24 anos, vive no município de Juazeirinho e viu a vida de sua família e de sua comunidade mudar a partir da ação da ASA. “Na minha comunidade foram muitas mudanças na vida das famílias e na organização comunitária. Fomos melhorando as estratégias para convivência com a região, que sempre havia sido mostrada pra gente como um lugar seco, de terra rachada, onde as pessoas morriam de fome e os animais não conseguiam sobreviver”. Petrúcia conta que as mudanças ocorreram pouco a pouco e que embora tivesse pouca idade na época, lembra dos momentos de reunião em que ia com os pais e de como a chegada da água foi determinante para uma nova perspectiva de vida. “Eu me considero parte da construção dessa rede”, diz com orgulho a jovem que faz planos para o futuro no campo.

Intercâmbio entre juventudes do Semiárido, realizado na Paraíba. | Foto: Arquivo Asacom
 “Temos um papel importante que é dar visibilidade a esse trabalho. E com estratégias como o audiovisual temos mostrado o que está sendo feito, que a juventude está organizada, preocupada com o meio ambiente e com a produção de alimentos saudáveis. Temos produzidos materiais para contribuir nos processos de formação e desmistificar o que parte da sociedade lá fora fala do nosso Semiárido. Essa história de que no Semiárido não dá pra viver bem é mentira. O que fizemos na ASA mostra que podemos viver bem no campo. Vivemos um período de perdas de direitos, mas esses 20 anos tem muito chão e eu tenho certeza que a juventude que esteve nesse processo de construção está fervorosamente motivada a chamar mais pessoas pra essa luta”, diz Petrúcia.
É essencial destacar que não há avanço no Semiárido ou em qualquer parte do mundo sem distribuição de renda e sem troca de conhecimento. O Semiárido de hoje é também fruto disso. “O avanço de políticas sociais – Bolsa Família, BPC [Benefício de Prestação Continuada, garantido pelo Sistema de Seguridade Social], sobretudo -, coincidia com significativa valorização do salário mínimo e com a extensão da Previdência ao meio rural. Isso impactou positivamente a renda das famílias rurais, sobretudo no Nordeste (onde ela cresceu mais que a média nacional).  Merece ainda referência investimentos na infraestrutura hídrica de pequeno porte (cisternas, onde a ASA se destacou) e de energia (Luz para Todos), que mudou a qualidade de vida das famílias rurais. Em paralelo, investimentos em educação se ampliavam, inclusive no ensino superior, que se expande se interiorizando e gerando oportunidades de qualificação para a juventude rural. O Nordeste rural que daí emerge é outro e melhor. Basta ver a experiência do último longo período de seca: registraram-se os impactos econômicos negativos mas não se viu mais o flagelo social que expunha a miséria nordestina nas secas anteriores”, afirma Tânia Bacelar.
Para o agricultor experimentador de Monte Alegre, em Sergipe, Seu Carlinhos, falar da ASA é falar do Semiárido. Com a propriedade de quem nasceu, sempre viveu no Semiárido e já foi à África falar como convive na região, ele diz: “sem a natureza, quem somos nós? A cidade só veve, mode o homem do campo e o homem do campo só veve mode a natureza. Veio essa coisa de conviver, aí tem o barreiro, você aprende a deixar mais mato, porque quando você tem mato você tem água, aprendeu a tapar o riacho, para ter mais uma aguinha e assim vai (…)”. Assim como Seu Carlinhos reconhece a natureza como base para sua existência, a ASA reconhece que, para avançar e continuar viva, é preciso reafirmar o Semiárido – seu povo e o conhecimento produzido localmente, a partir das mais diversas experimentações – como seu lugar de máxima expressão.
Embora o atual contexto político e social no Brasil e no mundo não seja o mais favorável o histórico da ASA tem sido uma das suas fortalezas. “A história não segue uma rota linear, ela é errática e assim como nos surpreendemos com grandes retrocessos, também em determinados momentos os avanços se aceleram. (…) É preciso que nossa luta se intensifique, que saibamos nos agregar com todas e todos que se alinham com a democracia e a justiça e que agucemos nossa capacidade criativa para esse enfrentamento. A história da ASA é algo a nos inspirarmos por reunir todos esses três elementos”, provoca Francisco Menezes, uma referência em temas de segurança alimentar, fome, pobreza e desigualdade, conhecedor da ASA de longas datas e atuante em diversos espaços como o extinto Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e da Actionaid Brasil.

Desde 2017 a ASA tem se aventurado a debater e trocar experiências com outras organizações e movimentos que atuam em regiões áridas e semiáridas do Planeta. Essas trocas também tem fortalecido as práticas camponesas, uma vez que os agricultores e agricultoras, que não se intimidam com a barreira linguística, mas compreendem perfeitamente a realidade um do outro através das vivências e das práticas experimentadas conjuntamente. Além de viverem em regiões áridas e semiáridas, o que une esses grupos são as mudanças climáticas e a desertificação. Infelizmente, 20 anos se passaram, mas essa está longe de ser uma causa vencida. Não porque nada foi feito. A experiência da ASA no Semiárido brasileiro, inclusive, ganhou o Prêmio Política para o Futuro, em 2017, em virtude da sua eficiência na mitigação dos efeitos da desertificação, mas é preciso envolver muito mais do que os povos do Semiárido. É preciso que o mundo compre essa causa.

Na foto, agricultoras e agricultores de Cantón San Bartolo comemoram primeira cisterna construída em El Salvador, baseada no modelo brasileiro implementado pela ASA no Semiárido. | Foto: Hugo de Lima / Arquivo Asacom
 Para Francisco Menezes, “precisamos saber articular nossas lutas sociais e ambientais. É preciso que se questione isso na sociedade, sobretudo entre os mais jovens. As greves climáticas ocorridas recentemente em diferentes partes do mundo mostraram jovens e crianças se rebelando contra toda essa insanidade. A ideia da convivência com o Semiárido e o que se implementou a partir dessa compreensão são provas vivas do quanto alternativas construídas a partir dos territórios e adotadas como políticas públicas trazem perspectivas muito mais promissoras para a humanidade. Temos que buscar formas de preservar toda essa trajetória e se não for através de recursos públicos federais, que se busque apoios nos níveis estaduais e municipais, sempre que possível”.
É com a sabedoria de quem sabe na prática que as mudanças só se efetivam quando olhamos com afeto e generosidade para o nosso lugar, o local de onde viemos. É dele que vem nossa inspiração. Isso nos impulsiona a sair do lugar, nos movimenta, nos mobiliza, encontramos nossos pares, nos articulamos, mudamos a realidade. Esse é o presente e o futuro da ASA.
É no Semiárido que a Vida Pulsa. É no Semiárido que o Povo Resiste!
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